GRUPO DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO, CIÊNCIA & TECNOLOGIA (GPEC&T)

O GPEC&T é um grupo interdisciplinar vinculado à Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, e coordenado por Marcos Barbosa de Oliveira, professor-associado desta instituição. Começou a se reunir em fins de 2001, e em junho de 2002 registrou-se no Diretório dos Grupos de Pesquisa no Brasil da Plataforma Lattes / CNPq.

O texto a seguir tem o objetivo de caracterizar a linha de trabalho do grupo: seus pressupostos, fundamentação teórica, questões que se coloca, etc. Devido à limitação de espaço, tal apresentação precisa ser um tanto esquemática e, nesse registro, convém tomar como ponto de partida uma concepção de ciência e tecnologia que se pode denominar concepção ortodoxa.

A concepção ortodoxa confere um valor positivo muito alto à ciência e tecnologia. De acordo com ela, a ciência é o paradigma da racionalidade, a forma mais profunda, rigorosa e confiável de conhecimento acessível ao homem. É também um fator imprescindível para o progresso da humanidade pela eficiência na produção da vida material que proporciona, através de sua aplicação prática, a tecnologia. A concepção ortodoxa tem uma longa história: seus primórdios encontram-se na revolução científica dos séculos XVI e XVII; com o Iluminismo, definem-se seus traços essenciais; no século XIX, fortalecida pela revolução industrial e o avanço do capitalismo, ela se consolida como um elemento central do credo progressista da época, para o que muito contribuiu, no plano filosófico, a tradição positivista. Nos países periféricos como o nosso, a partir de meados do século XX, a concepção ortodoxa passa a integrar o ideário desenvolvimentista, que vê os problemas sociais como manifestação de subdesenvolvimento, de atraso em relação aos países centrais, e inclui a promoção da ciência e da tecnologia entre os fatores imprescindíveis para a superação desse atraso. Nos últimos 25 anos, aproximadamente, com a ascensão do neoliberalismo, a concepção ortodoxa adquire uma nova feição, em que se acentua o valor instrumental da ciência, em detrimento do valor do conhecimento científico como um fim em si mesmo. A ciência pura praticamente deixa de existir, como parte de um processo em que ciência e tecnologia tendem a se fundir na tecnociência, deixando de poderem ser separadas, de muitos pontos de vista. A concepção ortodoxa neoliberal vê o conhecimento tecnocientífico como uma forma de mercadoria – com todas as implicações que isso traz para o direcionamento da pesquisa, e o modo como é organizada sua produção e distribuição –, uma forma de mercadoria especialmente importante, na medida em que corresponde ao fator dinâmico principal da atual fase de desenvolvimento do capitalismo. Tal configuração é responsável pelo surgimento de expressões como “sociedade do conhecimento”, usadas para caracterizar o momento histórico em que vivemos.

Apesar de há muito tempo ter se estabelecido como a dominante, a concepção ortodoxa não deixou de ser objeto de críticas ao longo de sua história. Já no século XIX foi alvo de ataques por parte dos românticos, no século XX, por parte de Heidegger, e depois dos pensadores da Escola de Frankfurt. Logo após o fim da Segunda Guerra Mundial, o prestígio da ciência sofre um forte abalo, devido às suas aplicações bélicas, especialmente no caso das bombas atômicas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki. Essa relativa queda de status se acentua um pouco mais tarde, com o fortalecimento da consciência dos efeitos nefastos do modo industrial de produção: os vários tipos de poluição e outras formas de degradação do meio ambiente, o uso predatório dos recursos naturais, etc. Em fins da década de 60 forma-se, especialmente nos Estados Unidos e Inglaterra, uma onda crítica representada, nesses países, pelo movimento denominado Science for the People. Esse movimento era integrado em sua maior parte por cientistas, e tinha um caráter fortemente engajado, ou seja, colocava-se como objetivo atuar como uma força política que pudesse de fato influir na maneira como são conduzidas as práticas tecnocientíficas. Bastante vigoroso durante a década de 70, o movimento perde a força na década seguinte, que marca o início da ascensão do neoliberalismo. Ao mesmo tempo, vai se desenvolvendo uma outra vertente de crítica à concepção ortodoxa, a saber, a crítica pós-moderna.

A crítica pós-moderna de um certo ponto de vista é mais radical que a do Science for the People. Ela incide principalmente na atribuição à ciência, por parte da concepção ortodoxa, do status de única forma realmente válida de conhecimento. Para os pós-modernos, tal pretensão reflete um etnocentrismo ocidental, o qual é combatido, de um lado pelo questionamento da racionalidade do método científico, de outro pela valorização de formas alternativas de conhecimento, próprias de sociedades tradicionais ou de grupos minoritários. A crítica pós-moderna, contudo, é menos engajada, e sua forte inclinação a assumir posições relativistas aliena uma proporção considerável de outros críticos da concepção ortodoxa, pouco dispostos a aderir ao irracionalismo que elas implicam.

Mais recentemente, começou a se esboçar uma nova onda crítica, que incorpora elementos de todas as anteriores numa nova configuração. Ela nasce no momento histórico em que a hegemonia do pensamento neoliberal ultrapassa seu apogeu, e começa e entrar em crise, dado seu fracasso, cada vez mais patente, em erradicar do mundo a fome, a miséria e a violência, em contribuir para a justiça social, diminuindo as desigualdades entre os países, e no interior de cada país, em promover uma relação mais saudável do homem com a natureza. Pela importância crucial da tecnociência na sociedade globalizada, coloca-se a questão de sua responsabilidade por tal estado de coisas. A partir daí, desenvolve-se não uma crítica geral abstrata, de caráter anticientífico ou tecnofóbico, mas um questionamento concreto, caso a caso, que, sem sem perder a noção do todo, examina os impactos diretos e colaterais das inovações tecnocientíficas na sociedade, tendo sempre em vista a procura de maneiras de influir na determinação do ritmo e dos rumos das práticas tecnocientíficas, de modo a que passem a contribuir de fato para o progresso material e espiritual da humanidade – ou seja, para a realização das promessas iluministas feitas em seu nome, e até agora não cumpridas.

É nesse novo movimento crítico que o GPEC&T se insere. Nos termos mais gerais, a proposta é realizar estudos visando esclarecer o verdadeiro papel social da ciência e tecnologia no mundo de hoje, especialmente naquilo que é relevante para o ensino de ciências em todos os níveis, e para a produção do conhecimento científico na Universidade. Dentre os autores que inspiraram a formação do grupo, merece referência especial Hugh Lacey, um filósofo da ciência australiano de nascimento, há muito radicado nos Estados Unidos, mas que mantém fortes ligações com o Brasil. As propostas do GPEC&T derivam em boa parte da leitura dos livros de sua autoria Valores e atividade científica (São Paulo, 1998) e Is science value free?: values and scientific understanding (Londres e Nova York, 1999), bem como de vários artigos recentemente publicados.

No Diretório dos Grupos de Pesquisa do CNPq, o projeto de trabalho do GPEC&T foi caracterizado por meio de três linhas de pesquisa. Para terminar, apresentam-se a seguir essas linhas, numa descrição um pouco menos sumária que a registrada no Diretório.

1. “A questão da neutralidade da ciência e da tecnologia”. Um dos objetivos desta linha é determinar o que precisamente se quer dizer quando se sustenta (como o faz a concepção ortodoxa), ou se rejeita (como a crítica pós-moderna) a tese de que a ciência e a tecnologia são neutras. A sustentação tem como conseqüência colocar a ciência e a tecnologia fora do alcance de um questionamento do ponto de vista dos valores. O GPEC&T se inclina portanto para a rejeição da tese, procurando formulá-la de forma tal que não resulte numa queda no relativismo, como de maneira geral acontece na crítica pós-moderna. A negação da tese só é efetiva se acompanhada da caracterização de formas alternativas de conhecimento, podendo estas ser ou não apresentadas como novas formas de conhecimento tecnocientífico. Neste sentido, a linha de pesquisa em pauta envolve o estudo tanto do conhecimento tradicional, ou popular, como o investigado pela etnociência, quanto do conhecimento associado a práticas como as da agroecologia.

2. “Tecnociência e desenvolvimento”. Esta linha considera a tecnociência do ponto de vista dos países periféricos como o nosso, questionando tanto as teses desenvolvimentistas a seu respeito, quanto os próprios modelos de desenvolvimento em que as teses se assentam. Nela se procuram também formas de inserção social da ciência e tecnologia alternativas à forma mercantil que se acentuou com o neoliberalismo, como os novos processos de controle democrático dos rumos da pesquisa tecnocientífica que têm sido propostos e experimentados.

3. “Vertentes de crítica à ciência e tecnologia”. Esta linha é de caráter um pouco mais histórico que as anteriores, e tem por objeto de estudo as vertentes de crítica já mencionadas – a dos românticos, da Escola de Frankfurt, do Science for the People, dos pós-modernos, e outras – constrastando-as com as versões da concepção ortodoxa vigentes nos respectivos períodos históricos. Entre os temas mais específicos a serem estudados, destaca-se o da ciência como forma de dominação, ou controle, da natureza e do próprio homem.

As três linhas de pesquisa definem o universo de questões a que o GPEC&T se dedica. A proposta é de que todos os membros efetivos do grupo, individualmente ou em sub-grupos, desenvolvam projetos inseridos em uma ou outra delas, de tal modo que o empreendimento coletivo possa ser apresentado como um projeto integrado de pesquisa.

São Paulo, maio de 2003.