O trabalho de pesquisa que quero resumir nesta comunicação começou em 2001 com a orientação do Prof Marcos e teve como resultado minha dissertação de mestrado defendida em abril passado. Trata-se de uma reflexão sobre a tese da neutralidade da ciência com a finalidade de contribuir para a formação de professores de ciência. Vou tentar resumi-lo dentro do espaço de tempo disponível.
Nosso ponto de partida é a constatação de que algumas das propostas apresentadas pelos Parâmetros Curriculares Nacionais – documento publicado pelo MEC em 1997-1998 –, particularmente no que se refere ao ensino de ciências, representam um autêntico avanço com relação ao ensino tradicional da área. Refiro-me à insistência com que o documento recorda aos educadores que a ciência não é uma atividade neutra. Foi precisamente a novidade do assunto que nos estimulou para este estudo.
De modo geral, e não apenas nos volumes referentes às ciências naturais, os Parâmetros tomam como premissa fundamental a idéia de que a educação deve estar dirigida para a formação da cidadania. Isto significa que, além dos conhecimentos específicos de cada área, a educação deve contribuir para a formação do cidadão, com tudo o que isso implica em termos de informação, de capacidade de refletir por conta própria, de questionar a realidade, de levantar dúvidas, de participar da vida pública e do desenvolvimento da sociedade.
Além disso, a constatação da enorme importância da Ciência e da Tecnologia nos diferentes aspectos da nossa vida e da nossa sociedade levou os Parâmetros à idéia de que o ensino de ciência não pode se limitar à transmissão dos conteúdos, por assim dizer, “internos” às diferentes áreas científicas – ou seja, às teorias e práticas científicas –, mas é necessário ir mais longe e explorar com os alunos o papel da ciência na sociedade.
De acordo com o documento, não podemos ensinar uma Ciência desvinculada do seu significado histórico-social. Não podemos tratar a Ciência em sala de aula como se as suas descobertas e explicações do mundo fossem independentes da vida das pessoas e das diferentes sociedades onde ela é feita. Nem se pode passar aos estudantes a idéia de que a Ciência é simples resultado do esforço pessoal de indivíduos geniais, de sábios comprometidos apenas com as descobertas racionais relacionadas ao funcionamento natural do mundo.
Assim, logo na “apresentação” do volume 4 – sobre Ciências Naturais para o primeiro e segundo ciclos do ensino fundamental –, ao fazer a síntese do que será tratado nas páginas seguintes, o texto afirma que:
“(...) este documento, (...), apresenta um breve histórico das tendências pedagógicas predominantes na área, debate a importância do ensino de Ciências Naturais para a formação da cidadania [e] caracteriza o conhecimento científico e tecnológico como atividades humanas, de caráter histórico e, portanto, não-neutras”.
Uma outra citação importante dos Parâmetros sobre o questionamento da neutralidade da ciência é esta:
“é importante reiterar que, sendo atividades humanas, a Ciência e a Tecnologia são fortemente associadas às questões sociais e políticas. Motivações aparentemente singelas, como a curiosidade ou o prazer de conhecer são importantes na busca de conhecimento para o indivíduo que investiga a natureza. Mas freqüentemente interesses econômicos e políticos conduzem a produção científica ou tecnológica. Não há, portanto, neutralidade nos interesses científicos das nações, das instituições, nem dos grupos de pesquisa que promovem e interferem na produção do conhecimento”.
Estas passagens impõem aos professores de ciências um debate em torno do significado filosófico e social da tese da neutralidade. Ao ler o documento, nossa dúvida foi esta: afinal, o que os Parâmetros estão querendo dizer ao afirmar que a ciência não é neutra? O que significa assumir a tese da não-neutralidade da ciência? Nossas leituras mostraram que os Parâmetros não dão uma explicação clara para esta pergunta. Não há uma definição categórica que nos esclareça com um mínimo de precisão e objetividade o que significa a afirmação de que a ciência não é neutra. Assim, este passou a ser o ponto chave do problema discutido em nosso trabalho: que definição se pode dar da tese da neutralidade que sirva de base referencial para as reflexões, críticas e discussões entre professores e estudantes em sala de aula?
Na tentativa de resolver nosso problema, dois pontos nos pareceram importantes logo no início de nossas reflexões:
Em primeiro lugar, que ao ressaltar as dimensões do fazer científico como um fazer histórico e humano – como um saber construído pelos homens – e relacioná-lo por isso com os “valores” éticos, culturais ou sociais, queremos criar condições para um exame crítico do papel da ciência na sociedade e seu impacto sobre a vida humana e o meio ambiente. Ou seja, os rumos assumidos pela ciência e suas conseqüências não são fruto de direcionamentos propriamente neutros adotados nas pesquisas. Assim, uma boa definição da neutralidade será aquela que incorpora uma postura crítica em relação ao papel social da ciência.
Em segundo lugar, uma outra característica fundamental para uma noção adequada da não-neutralidade é que ela se mantenha dentro de um padrão aceitável de racionalidade, isto é, que não seja e nem implique em alguma forma de relativismo. As noções relativistas criadas em torno da idéia de neutralidade são as que geram críticas confusas, ambíguas e, inclusive, indevidas à ciência e ao trabalho dos cientistas.
O relativismo é uma atitude filosófica que diverge radicalmente dos pressupostos da tradicional prática científica, na medida em que todo cientista acredita que suas investigações sobre as realidades deste mundo são um caminho na direção da verdade objetiva – um caminho cuidadoso e sistemático, que utiliza métodos de controle, testes, comprovações, etc. – e, ainda que sujeita a retificações, a busca é objetiva e não uma construção pessoal, nem social da verdade científica.
As respostas para o nosso problema foram encontradas nos trabalhos de Hugh Lacey. Dispenso maiores apresentações sobre Lacey, pois estará conosco hoje à tarde. Para o que nos interessa, vale lembrar, que as idéias centrais de sua filosofia da ciência estão em dois de seus livros, além de inúmeros artigos publicados em diversas revistas especializadas: um, publicado em 1998 pela Discurso Editorial com o título Valores e Atividade Científica, e o outro, intitulado Is Science Value Free? Values and Scientific Understanding, publicado em Londres em 1999.
Como vemos pelos títulos de seus trabalhos, Lacey analisa a ciência em termos de valores. Não pretendo expor em detalhes a maneira como Lacey entende a presença dos valores na atividade científica, pois este será o tema da palestra de hoje à tarde. Quero apenas afirmar que sua filosofia da ciência tem no seu centro uma análise e uma avaliação de dois aspectos fundamentais da prática científica. O primeiro se refere à dinâmica, digamos, intelectual interna das explicações científicas, segundo a qual a ciência se relaciona com os valores cognitivos por meio da tese da imparcialidade. E o segundo diz respeito ao peso dos condicionamentos sociais (valores sociais) na produção desse mesmo conhecimento: são as teses da neutralidade e da autonomia. É exatamente essa distinção de níveis em que os valores atuam nas práticas científicas que nos permitem encontrar uma definição precisa para a tese da neutralidade da ciência.
Segundo Lacey,
“(...) a neutralidade afirma que uma teoria poderia ser aplicada, em princípio, a práticas pertinentes a qualquer perspectiva de valor e não serve de modo especial aos interesses de nenhuma perspectiva de valor particular”.
No entanto, o tipo de entendimento materialista da realidade proporcionado pela ciência moderna está claramente a serviço de uma forma específica de se relacionar com o mundo. A estratégia materialista adotada pela ciência moderna desde o seu início determinou bem o que a ciência pretende em suas investigações, impondo restrições às teorias no sentido de que as coisas fossem representadas em termos de estruturas, processos e leis subjacentes, ao mesmo tempo em que identificariam relativamente bem as “possibilidades materiais” das coisas. Ou seja, o entendimento obtido mediante as estratégias materialistas aumenta a capacidade de exercer controle sobre a natureza.
Conquistar o controle pelas práticas científicas passou a ser um importante valor social. Ou seja, valores não exclusivamente cognitivos são sustentados e priorizados no que Lacey chama de “moderno esquema de valor do controle”. Deste modo, o desenvolvimento teórico da ciência e, conseqüentemente, o controle tecnológico, passaram a se alimentar tão profundamente um do outro que, no contexto moderno, é quase impossível entender um separado do outro. Entre Ciência e Tecnologia há, por assim dizer, uma afinidade mutuamente reforçadora que torna a ciência uma atividade não neutra, já que está a serviço dos interesses da moderna sociedade tecnológica e não a serviço de qualquer perspectiva de valor social.
Esta noção sobre como a ciência se relaciona com os valores é a que falta nos Parâmetros. Em razão de sua complexidade, o caráter não-neutro da ciência não é um assunto que deva ser tratado diretamente pelo professor em sala de aula, mas um conceito que, uma vez esclarecido, deve orientar o professor nas discussões sobre as implicações políticas e sociais da produção e aplicação dos conhecimentos científicos e tecnológicos. Assim, ao se afirmar que o ensino de ciência deve ir acompanhado de um consciente questionamento sobre o papel social da ciência no mundo moderno, tal discussão, para ser objetiva, requer que o professor tenha uma clara noção sobre as formas como a ciência está relacionada com o mundo dos valores cognitivos, morais e sociais. Transmitir, portanto, aos professores de ciência a objetividade das teses da imparcialidade, da neutralidade e da autonomia é prepará-los para o debate entre ciência e sociedade.
Além disso, gostaria de assinalar que a maneira como Lacey analisa a ciência responde no fundo não apenas a uma preocupação teórica, limitada ao campo das idéias, mas a um posicionamento de crítica com relação ao papel social da ciência no mundo moderno. A presença de valores nas práticas científicas é fundamental em suas críticas ao atual modelo social de desenvolvimento. As palavras que seguem esclarecem bastante bem a maneira como Lacey avalia as relações da ciência com o neoliberalismo moderno:
“No momento atual, as práticas de controle da natureza estão nas mãos do neoliberalismo e, assim, servem a determinados valores e não a outros. Servem ao individualismo em vez de à solidariedade; à propriedade particular e ao lucro em vez de aos bens sociais; ao mercado em vez de ao bem estar de todas as pessoas; à utilidade em vez de ao fortalecimento da pluralidade de valores; à liberdade individual e à eficácia econômica em vez de à libertação humana; aos interesses dos ricos em vez de aos direitos dos pobres; à democracia formal em vez de à democracia participativa; aos direitos civis e políticos sem qualquer relação dialética com os direitos sociais, econômicos e culturais”.
Se recordarmos que o nosso interesse inicial era encontrar uma definição para a tese da não-neutralidade da ciência que incorporasse, por assim dizer, o princípio motivador dos debates em torno das dimensões sociais da atividade científica, ou seja, incorporasse uma postura crítica em relação ao papel social da ciência, penso que as reflexões de Lacey respondem bastante bem a este objetivo.
Nossa conclusão, portanto, é que, se antes se acreditava num ethos científico desinteressado, puro, seguro de si e de sua racionalidade, hoje, entretanto, são os interesses econômicos e políticos que conduzem a produção científica e tecnológica por meio do controle da natureza. Sendo uma construção humana fortemente associada a fatores sociais e políticos, podemos afirmar que não há neutralidade nos interesses científicos das instituições, nem dos grupos de pesquisa que promovem e interferem na produção do conhecimento. Contudo, essa não-neutralidade que a ciência adquire por estar inserida numa realidade social concreta não impede de vermos em seu interior, nos processos epistemológicos de seleção de teorias assentados nas observações dos fenômenos e nas inferências corretas a partir dessas observações uma neutralidade que, na terminologia adotada por Lacey e assumida neste trabalho denomina-se imparcialidade.
Por fim, gostaria de assinalar que, como essas considerações apontam no sentido de negar uma pretensa neutralidade da ciência, elas sugerem que todos os que estão de alguma maneira envolvidos com o conhecimento científico – cientistas, professores, estudantes, órgãos públicos nacionais e internacionais, etc – façam uma reflexão sobre os “contextos” nos quais a ciência tem se aliado à tecnologia. Não basta que um cientista se ufane do rigor das suas demonstrações e provas ao afirmar que conhece “objetivamente” a realidade, nem que se vanglorie de conquistas teóricas avançadas. É necessário que todos reflitam sobre o significado e as implicações sociais do trabalho científico. Se considerarmos que a tecnologia tem produzido, com a ajuda da ciência, inúmeros benefícios para a humanidade, ela também tem sido a responsável – igualmente com a ajuda da ciência – por incontáveis malefícios: monopólios, destruição de florestas, poluição, congestionamentos urbanos, desigualdades sociais e de rendas, etc. Torna-se, portanto, urgente que a formação científica quando cultivada com espírito crítico e senso de cidadania, contribua para o progresso de uma sociedade mais justa, ética e sustentável.
Cabe, em grande parte, aos professores a tarefa de saber selecionar, organizar e problematizar as discussões em sala de aula. Promover debates que ultrapassem os limites da mera descrição das teorias e práticas científicas, estimulando nos estudantes o desenvolvimento de uma postura reflexiva, crítica e questionadora sobre as escolhas – não neutras – realizadas no direcionamento das pesquisas científicas.
NOTAS
[1] BRASIL, 1997b, p. 15 (os grifos são nossos).
[2] BRASIL 1997b, p. 29.
[3] LACEY, H.(1998), p. 14.
[4] ibid., p. 32