OS LIMITES E POSSIBILIDADES DA CIÊNCIA NO ENSINO DE CIÊNCIAS

Trabalho apresentado na forma de pôster no Fórum Mundial de Educação – São Paulo 2004

Paulo Roberto dos Santos

Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo

De acordo com os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), o ensino tradicional de ciência sempre tomou o conhecimento científico como neutro e a verdade científica nunca era questionada.[1] Os professores estariam cumprindo suas funções se conseguissem transmitir eficazmente os conhecimentos científicos acumulados pela humanidade. Assim, um bom curso de ciência seria aquele que conseguisse passar aos estudantes uma significativa quantidade de conteúdos previstos para a área.

No entanto, as novas propostas de ensino pretendem que o professor saiba ir além da simples transmissão e garantia de que determinados conceitos e procedimentos científicos sejam adquiridos pelos estudantes. É necessário ajudar o jovem a desenvolver um olhar crítico, menos dependente e passivo, com relação à ciência e à tecnologia. Importa que o aluno aprenda não só os conteúdos, digamos, internos à ciência, mas também, que saiba se posicionar perante os problemas gerados pela ciência e pela tecnologia a partir de um ensino de ciência crítico e questionador.

Neste sentido, podemos afirmar que os aspectos importantes ligados ao ensino de ciência são dois: primeiro, que a aprendizagem do conhecimento científico deve ser compreendida como uma aventura que supõe verdadeiras transformações no modo de pensar do aluno; uma das principais preocupações dos professores é mostrar como a ciência funciona, como os cientistas enfrentam os problemas, buscam soluções, constatam validades e erros nas hipóteses e tudo a partir de contínuas investigações e criatividade próprias da atividade científica. E segundo, que o professor deve apresentar a ciência como “uma forma” de se pensar e se relacionar com a natureza. Ou seja, a ciência é apenas um tipo – entre outros – de interação entre o homem e a natureza cujo resultado tem sido o moderno progresso tecnológico decorrente dessa interação.

O ponto que queremos ressaltar se refere a este segundo aspecto do ensino de ciência. A forma como a ciência é praticada e ensinada contém em si uma determinada “visão” da realidade que nem sempre é captada claramente pelos que a ensinam ou aprendem. Os que se apropriam dos conhecimentos proporcionados pela ciência adquirem um modo específico de ver, ouvir e se decidir na vida muito diferente dos que não possuem esse conhecimento ou possuem outras maneiras de explicar a natureza. No entanto, o progresso tecnológico baseado na ciência moderna é tão dominante que apagou qualquer estilo alternativo de se relacionar com a natureza. O olhar que a ciência tem para o mundo responde a uma obcecada sede de racionalidade, eficácia, rendimento, lucro, controle, etc. Por tudo isso, ajudar o aluno a criar um olhar crítico sobre a ciência é contribuir para a superação de uma postura “cientificista” bastante difundida na sociedade moderna que vê na ciência –e no seu ensino – uma forma superior do homem se relacionar com a natureza na resolução dos seus problemas.

Questões ambientais como os da poluição de rios e o acúmulo de gases nocivos na atmosfera, alterações no equilíbrio da natureza como o aumento da temperatura global do planeta devido ao efeito estufa, armas de poder destrutivo inimaginável, exploração descontrolada dos recursos naturais, etc., são fatos negativos inegavelmente associados ao modelo de desenvolvimento proporcionado pela parceria entre ciência e tecnologia, no contexto do sistema capitalista. O avanço vertiginoso das aplicações tecnológicas tem gerado também graves questões sociais como a dificuldade de acesso de boa parte da população aos benefícios da ciência, a concentração de poder bélico e econômico nos países centrais, as polêmicas em torno dos transgênicos, da clonagem de seres humanos, das usinas e do lixo nucleares, etc. Todos estes são problemas que surgem na esteira do progresso proporcionado pela ciência moderna e que estimulam o questionamento das atuais relações entre a ciência e o desenvolvimento da sociedade.

Despertar o estudante de ciência para um olhar crítico ao constatar tais problemas é fundamental. Todavia, se por um lado devemos superar a postura “cientificista” no ensino de ciências, por outro lado, não se trata de criar um espírito anticientífico radical favorável a uma renúncia total à ciência – uma espécie de niilismo –, pois isto significaria abandonar certas conquistas no campo da racionalidade que funcionam como um verdadeiro ideal na forma do homem entender a natureza. Ao mesmo tempo em que seria utópico, para não dizer estranho, admitir um retorno da sociedade moderna a uma espécie de vida in natura, a uma forma de vida simples e natural, imune à “pervertida” racionalidade científica. [2]

Em vista disso, a dúvida que se impõe é esta: que opções podem ser criadas através do ensino de ciência de modo a envolver o aluno num autêntico olhar crítico com relação à ciência e suas aplicações? Se o objetivo não é eliminar a ciência da escola – nem seria isso possível –, a resposta ao nosso problema parece estar numa discussão acerca dos rumos que se deveria impor à ciência, tendo em conta os problemas e as necessidades fundamentais de toda a sociedade.

O desejo de todos é que a ciência contribua para a construção de uma sociedade justa, eficiente e em harmonia com a natureza. Que ela não seja supervalorizada em virtude de sua inegavelmente grande capacidade de conhecer o mundo e nem facilmente perdoada pelos efeitos negativos que nascem das abusivas intervenções humanas na natureza. Este é o ponto de partida para um olhar crítico à ciência. Trata-se de explorar com os alunos o papel da ciência na sociedade.

Além disso, se levarmos em conta que a ciência é uma atividade não-neutra, conforme afirmam os PCNs, isso significa que ela deve coexistir com outras formas de se entender e se relacionar com a natureza, distintas da científica, e também não neutras, mas eficientes do ponto de vista do conhecimento. Uma investigação coerente e sistemática depende da estratégia adotada e a ciência moderna é fruto de uma estratégia materialista de restrição e seleção que favorece o controle baconiano da natureza. Uma crítica importante a ser feita com relação à ciência consiste em promover o desenvolvimento de outras estratégias que permitam outras formas de explicação da natureza independentes do ideal de controle.

Para os PCNs, “o ensino de Ciências Naturais é espaço privilegiado em que as diferentes explicações sobre o mundo, os fenômenos da natureza e as transformações produzidas pelo homem podem ser expostos e comparados.”[4] Assim, o ensino de ciência não deve se constituir em um sistema único e fechado de entendimento do mundo, atrelado exclusivamente ao modelo tecnocientífico de desenvolvimento e exploração da natureza, mas, pelo contrário, deve ser ocasião de discussão e de debate capaz de ampliar os horizontes dos alunos e do professor diante das inúmeras possibilidades que o homem tem de se relacionar com a natureza.

Ao sugerir a conveniência de se explorar e se avaliar diferentes sistemas explicativos do mundo em sala de aula, os PCNs estão propondo que se discuta com os alunos os limites e as possibilidades do conhecimento científico. Em que medida a ciência é um saber diferente e superior a outros? Que outras formas de se relacionar com a natureza são possíveis? Ou ainda, o que faz a ciência ser um saber tão prestigiado? Historicamente, como, quando e por que a ciência se impôs como entendimento hegemônico nas sociedades consideradas modernas? Questões como estas indicam o teor dos questionamentos dirigidos à ciência quando o problema é analisar seus limites e possibilidades.[5]

Em resumo, trabalhar criticamente o conhecimento científico moderno é reconhecer que a ciência não é neutra, pois se trata de um saber a serviço de determinados valores sociais. O valor do controle sobre a natureza com a finalidade de se explorar as “possibilidades materiais” – tecnológicas – das coisas é caminho supervalorizado pelas atuais práticas tecnocientíficas. Um ensino de ciência crítico e questionador deve procurar advertir os estudantes da prioridade dada pela ciência a tais possibilidades. Ao mesmo tempo, o professor deve promover o debate sobre outras formas de entendimento do mundo –também eficientes – e cujas possibilidades sejam mais ecológicas e de acordo com as realidades de vida das comunidades que procuram entender a natureza, não para produzir tecnologia avançada, mas para satisfazer as necessidades locais de todos os seus membros.

NOTAS

[1] BRASIL, (1997), p. 19.

[2] Cf. BARBOSA DE OLIVEIRA, M. (1999), p. 206.

[3] Cf. LACEY, H. (1998). Lacey é um filósofo da ciência nascido em Sydney, Austrália, mas radicado nos Estados Unidos há muitos anos. Foi professor no Departamento de Filosofia da USP de 1969 a 1971. Desde 1972 é professor de filosofia do Swarthmore College, na Pensilvânia.

[4] BRASIL, (1997) p. 25.

[5] Um maior aprofundamento sobre o assunto pode ser encontrado em CHALMERS, A. (1993), cap. XII: “A ciência não é necessariamente superior a outras áreas do conhecimento”; THUILLIER, P. (1994): na introdução, seguindo Feyerabend, o autor questiona se a ciência é a única forma de racionalidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARBOSA DE OLIVEIRA, M. (1999) Da ciência cognitiva à dialética. São Paulo: Discurso Editorial.

BRASIL (1997b) Secretaria da Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: ciências naturais. [primeiro e segundo ciclos] – Brasília: MEC/SEF.

CHALMERS, A. (1993) O que é ciência, afinal?; tradução de Raul Fiker. 1. ed. – São Paulo: Brasiliense.

LACEY, H. (1998) Valores e atividade científica. São Paulo: Discurso Editorial.

THUILLIER, P. (1994) De Arquimedes a Einstein: a face oculta da invenção científica. Tradução de Maria Inês Duque-Estrada; revisão técnica de César Benjamin. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, (Col. Ciência e Cultura).